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quinta-feira, 1 de abril de 2010

A contrarrevolução jurídica

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS


Está em curso uma contrarrevolução jurídica em vários países latino-americanos. É possível que o Brasil venha a ser um deles. Entendo por contrarrevolução jurí­dica uma forma de ativismo judiciário conservador que consiste em neutra­lizar, por via judicial, muito dos avan­ços democráticos que foram conquis­tados ao longo das duas últimas déca­das pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições.Como o sistema judicial é reativo, é necessário que alguma entidade, indi­vidual ou coletiva, decida mobilizá-lo. E assim tem vindo a acontecer porque consideram, não sem razão, que o Po­der Judiciário tende a ser conserva­dor. Essa mobilização pressupõe a existência de um sistema judicial com perfil técnico-burocrático, capaz de zelar pela sua independência e aplicar a Justiça com alguma eficiência. A contrarrevolução jurídica não abrange todo o sistemajudicial, sendo contrariada, quando possível, por se­tores progressistas.Não é um movimento concertado, muito menos uma conspiração. E um entendimento tácito entre elites polí­tico-econômicas e judiciais, criado a partir de decisões judiciais concretas, em que as primeiras entendem ler si­nais de que as segundas as encorajam a ser mais ativas, sinais que, por sua vez, colocam os setores judiciais pro­gressistas em posição defensiva. Cobre um vasto leque de temas que têm em comum referirem-se a confli­tos individuais diretamente vincula­dos a conflitos coletivos sobre distri­buição de poder e de recursos na so­ciedade, sobre concepções de demo­cracia e visões de país e de identidade nacional.Exige uma efetiva convergência en­tre elites, e não é claro que esteja ple­namente consolidada no Brasil. Há apenas sinais nalguns casos perturba­dores, noutros que revelam que está tudo em aberto. Vejamos alguns.

- Ações afirmativas no acesso à edu­cação de negros e índios. Estão pen­dentes nos tribunais ações requeren­do a anulação de políticas que visam garantir a educação superior a grupos sociais até agora dela excluídos.Com o mesmo objetivo, está a ser pedida (nalguns casos, concedida) a anulação de turmas especiais para os filhos de assentados da reforma agrá­ria (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de progra­mas de educação indígena e de educa­ção no campo.

- Terras indígenas e quilombolas. A ratificação do território indígena da Raposa/Serra do Sol e a certificação dos territórios remanescentes de qui­lombos constituem atos políticos de justiça social e de justiça histórica de grande alcance. Inconformados, seto­res oligárquicos estão a conduzir, por meio dos seus braços políticos (DEM, bancada ruralista) uma vasta luta que inclui medidas legislativas e judiciais.Quanto a estas últimas, podem ser citadas as "cautelas" para dificultar a ratificação de novas reservas e o pedi­do de súmula vinculante relativo aos "aldeamentos extintos", ambos a ferir de morte as pretensões dos índios guarani, e uma ação proposta no STF que busca restringir drasticamente o conceito de quilombo.

- Criminalização do MST. Considerado um dos movimentos sociaismais importantes do continente, oMST tem vindo a ser alvo de tentati­vas judiciais no sentido de criminali­zar as suas atividades e mesmo de odissolver com o argumento de ser uma organização terrorista.

E, ao anúncio de alteração dos índi­ces de produtividade para fins de re­forma agrária, que ainda são baseados em censo de 1975, seguiu-se a criação de CPI específica para investigar as fontes de financiamento.

- A anistia dos torturadores na dita­dura. Está pendente no STF arguição de descumprimento de preceito fun­damental proposta pela OAB reque­rendo que se interprete o artigo 1° da Lei da Anistia como inaplicável a cri­mes de tortura, assassinato e desapa­recimento de corpos praticados por agentes da repressão contra oposito­res políticos durante o regime militar.

Essa questão tem diretamente a ver com o tipo de democracia que se pre­tende construir no Brasil: a decisão do STF pode dar a segurança de que a de­mocracia é para defender a todo custo ou, pelo contrário, trivializar a tortura e execuções extrajudiciais que conti­nuam a ser exercidas contra as popu­lações pobres e também a atingir ad­vogados populares e de movimentos sociais. Há bons argumentos de direito or­dinário, constitucional e internacio­nal para bloquear a contrarrevolução jurídica. Mas os democratas brasilei­ros e os movimentos sociais também sabem que o cemitério judicial está juncado de bons argumentos.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 69, sociólogo portu­guês, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre ou­tros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justi­ça" (Cortez, 2007).


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